Malvinas, que nada: por que ilha africana no Atlântico quer ser argentina

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1º24'S, 5º38'L
Falsa estátua de Diego Maradona
San Antonio de Palé, Annobón, Guiné Equatorial
Uma pequena ilha no Atlântico surpreendeu meio mundo ao anunciar seu desejo de ser anexada pela Argentina. Não, não são aquelas que você pode estar pensando.
As Malvinas ficam a cerca de 500 quilômetros da costa e têm um histórico de colonização argentina. O Reino Unido ocupa o arquipélago há quase 200 anos, mas boa parte da comunidade internacional apoia a reivindicação argentina sobre o território.
Já essa outra ilha, chamada Annobón, também fica a 500 quilômetros da costa. Só que da costa africana. É uma ligação geográfica nula. A conexão histórica também não é das mais relevantes, daí o espanto.
Então, por quê?
Que lugar é esse?

Annobón é a menor e mais isolada província da Guiné Equatorial. Está mais perto do país insular de São Tomé e Príncipe do que de sua própria capital federal, Malabo, e essa distância ajuda a explicar a confusão que acabou envolvendo a Argentina, a quase 7,5 mil quilômetros de distância.
Em 2022, Annobón iniciou um processo de tentativa de emancipação. Segundo a imprensa argentina, o autoproclamado primeiro-ministro da ilha, Orlando Lagar, acusa a Guiné Equatorial de discriminação e até genocídio.
"Somos um povo diferente, com uma identidade cultural e uma língua diferente", ele declarou à rádio Rivadavia. "Embora tivéssemos tudo o que precisávamos para formar nosso país, o colonialismo nos submeteu a essa entidade, criada em 1968, chamada Guiné Equatorial, que está nos matando de fome e sede."
Annobón decidiu recorrer ao próprio colonialismo para chamar a atenção de outros países. Não aquele supostamente praticado hoje pela Guiné Equatorial, mas o histórico, dos tempos do Império Espanhol.
A ilha integrava a antiga Guiné Espanhola, então o primeiro-ministro quer recuperar os laços com os países que formavam o Vice-Reino do Rio da Prata. Mais especificamente com sua capital, Buenos Aires.
"Não queremos ser anexados. Pedimos o apoio político da Argentina e queremos fazer parte, como um Estado associado ou uma província. Javier Milei, preste atenção ao povo de Annobón", declarou Lagar.
Ou seja, para conquistar a atenção da comunidade internacional, a ilha acusa o colonialismo contemporâneo recorrendo ao colonialismo do passado. Fora que tem outro elemento nessa história que a deixa ainda mais insólita: a participação de Portugal e Brasil.
Feliz ano bom
Navegadores portugueses foram os primeiros europeus a chegarem à ilha, no dia 1º de janeiro de 1473, daí seu nome. Acredita-se que ela era desabitada, o que começou a mudar no ano seguinte.
Annobón entrou na rota do comércio escravagista português, recebendo navios negreiros que saíam de Angola e São Tomé. A miscigenação de escravizados alforriados e europeus deu origem a um povo com identidade e cultura diferentes daquelas da costa, segundo Carl Skutsch na "Encyclopedia of the World's Minorities" ("Enciclopédia das minorias do mundo", sem edição brasileira).
Surgiu um novo idioma, o crioulo de Annobón. Hoje, é a língua de menos de 7 mil pessoas, habitantes de Annobón e de Bioko, uma outra ilha da Guiné Equatorial.
Em 1778, Portugal e Espanha assinaram um desses acordos que passam terras para cá e para lá, movendo gigatoneladas de heranças culturais como se fossem cartas na mesa. O Tratado de El Pardo ratificou as reivindicações de Colonia del Sacramento, hoje no Uruguai, pelos espanhóis e de partes do Rio Grande do Sul pelos portugueses.
Além disso, Portugal cedeu à Espanha alguns de seus territórios na África equatorial, dando origem à Guiné Espanhola. Annobón estava nesse balaio.
Os ilhéus não aprovaram a mudança e se revoltaram contra os novos colonizadores espanhóis. Mas não puderam fazer muito, e a ilha, junto com outras possessões da Espanha na África Subsaariana, passou a ser controlada a partir de Buenos Aires, segundo o historiador Gabriel Paquette em "Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions" ("Portugal imperial na era das revoluções do Atlântico", sem edição brasileira).
No século 19, Madri restabeleceu o controle direto sobre o território, e assim permaneceu até 1968. Na grande onda de independência que tomou o continente naquela década, a Guiné Espanhola se libertou, adotando o nome Guiné Equatorial.
Perseguição e ditadura
Francisco Nguema se autoproclamou presidente vitalício do novo país, e de fato ele governou até o fim da vida. Foi preso e executado a mando do próprio sobrinho, em 1979.
Esse sobrinho querido, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, comanda a Guiné Equatorial desde então. Péssimo para Annobón, segundo seu primeiro-ministro.
Em 1993, Mbasogo aumentou a repressão na ilha, cuja população se rebelou. Após pressão internacional, a situação esfriou, e o governo liberou presos políticos.
Em 2006, Annobón serviu para que a Guiné Equatorial conseguisse uma manobra geopolítica e cultural que favoreceria o país. Apesar dos laços coloniais com a Espanha, ela conseguiu entrar, com status de membro observador, na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Mais tarde, a Guiné Equatorial se tornou membro efetivo. Isso apesar da pressão contrária, devido às acusações de violações de direitos humanos no país.
Integrar a CPLP fortalece a colaboração cultural, econômica e diplomática entre os membros. Para um país do tamanho de Alagoas e com menos de 2 milhões de habitantes, é uma tremenda oportunidade.
Em 2014, o português foi restabelecido como um dos idiomas oficiais do país, além do espanhol e do francês. Toda essa movimentação só foi possível graças à ligação histórica de Annobón com as antigas colônias portuguesas.
Naquele ano, uma reportagem da agência Deutsche Welle mostrava que, se Annobón tem uma forte raiz lusitana, na porção continental do país ela não aparecia. Mesmo que o português tenha se tornado língua oficial da Guiné Equatorial, é quase impossível encontrar alguém no país que fale o idioma.
Em suma, Annobón de fato tem uma cultura local bastante diferente do resto do país. Por isso mesmo a ilha foi usada pelo governo para conseguir entrar na CPLP.
O curioso é que um fator determinante dessa diferenciação é a ligação de Annobón com a lusofonia. Mas seu autoproclamado primeiro-ministro quer resgatar laços não com Portugal ou o Brasil, mas com a Argentina e seu passado como colônia espanhola - tal qual a Guiné Equatorial, de quem a ilha quer se livrar.
Será que é só para chamar a atenção? Ou há algum outro elemento em jogo?
Lagar e o outro líder do movimento são veteranos da revolta de 1993. Ambos vivem exilados na Espanha.
Em 2013, no último referendo sobre a questão das Malvinas, 99,8% dos eleitores locais decidiram continuar com o status de território britânico. É algo do qual os argentinos podem não gostar, mas, pelo menos no Google Maps, Annobón já é muito mais argentina do que as Malvinas.
Em mais uma demonstração do talento sul-americano para uma bem-humorada anarquia online, uma porção de argentinos começou a editar os endereços da ilha africana. Foi a usina de memes dos últimos dias no país.
No mapa digital, Annobón tem uma estátua dedicada a Diego Maradona, além de uma igreja maradoniana. Há uma praça dedicada ao general libertador San Martín e churrascarias. O ápice é u ma estrutura semicircular, que foi batizada de "A Outra Metade da Bombonera".
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