Flavia Guerra

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Opinião

Cannes acerta e premia ousadia de 'O Agente Secreto' e de Jafar Panahi

"A arte mobiliza a energia criativa da parte mais preciosa e viva de nós. Uma força que transforma a escuridão em perdão, esperança e nova vida." Assim a presidente do júri do Festival de Cannes 2025, a atriz francesa Juliette Binoche, anunciou a Palma de Ouro para o iraniano Jafar Panahi, fazendo história no evento que mobiliza não só a cidade como o mundo do cinema por duas semanas.

A decisão de premiar um diretor que passou cerca de 14 anos proibido de deixar seu país, esteve preso nos últimos anos (por falar em apoio a outros cineastas que estavam presos) e que fez greve de fome é a prova de Cannes sempre vai combinar a qualidade com o caráter humanista dos filmes que premia.

Jafar, que afirmou que não tem medo de voltar para o Irã e que "não devemos temer os desafios", levou a Palma não por "It Was Just An Accident", exibido em competição em Cannes, mas por toda uma vida encarando os perigos reais e os desafio de fazer cinema e se expressar em um país em que isso pode realmente tirar a liberdade de quem o faz.

Com a Palma, Panahi se torna um diretor raro, que conquistou a tríplice coroa dos festivais mais importantes do mundo: Leão de Ouro (Veneza) por "O Círculo" (2000), Urso de Ouro (Berlim) por "Taxi para Teerã" (2015) e agora a Palma de Ouro. Mas o grande prêmio foi poder estar de volta ao circuito que o acolheu sempre. "Eu finalmente pude ver um filme com a plateia e cada minuto foi muito emocionante", declarou o diretor, que faz questão também de afirmar que não é mais heroico que um cidadão comum iraniano que tenta se manter fiel às suas convicções e sua ética.

Na trama de "It Was Just An Accident", que em português poderia ser "Foi Apenas um Acidente", um mecânico reconhece o oficial que o torturou na cadeira ao ouvir os passos compassados do homem, pois ele não tem uma perna, o que produz um som característico ao caminhar.

O cineasta iraniano Jafar Panahi e sua Palma de Ouro de Cannes 2025
O cineasta iraniano Jafar Panahi e sua Palma de Ouro de Cannes 2025 Imagem: Reprodução

Como na prisão, para onde foi mandado com outros companheiros por protestar por melhores condições de trabalho, eles sempre eram vendados, eles nunca viram o rosto do torturador. Então, ele, que está disposto a matar o oficial, pede ajuda para os companheiros para comprovar que se trata do homem certo. Mas os outros também não o viram. Um o reconhece pela voz, outro pelo cheiro e, nessa imensa dúvida, rodam a cidade de Teerã a bordo de uma van, protagonizam cenas engraçadas, outras dramáticas e tentam decidir se se igualam ao algoz e o matam ou se se mantém fiéis à sua ética e o poupam, não se deixam guiar pela vingança, mas sim pelo perdão do qual falou Binoche.

Kléber Mendonça Filho posa com os prêmios do Festival de Cannes 2025: Melhor Diretor e Melhor Ator para Wagner Moura
Kléber Mendonça Filho posa com os prêmios do Festival de Cannes 2025: Melhor Diretor e Melhor Ator para Wagner Moura Imagem: Lionel Hahn/Getty Images
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É justamente pelo fato de tratar de ética em tempos que um estado ditatorial oprimia com mão pesada e autoritarismo o Brasil que "O Agente Secreto" se comunica diretamente com "It Was Just An Accident".

Como bem observou Wagner Moura em entrevista a Splash, só o fato de se manter fiel às suas convicções em tempos sombrios é um ato político, que pode render perseguições. Marcelo, o personagem de Wagner, não é exatamente um perseguido político, mas foge de um sistema de poder que oprime e mata. A direção de Kleber Mendonça Filho, que constrói um fio que liga todos os seus trabalhos, é precisa e meticulosa. Sua visão de mundo e do cinema está expressa em cada frame de "O Agente Secreto". A homenagem ao cinema seja como tema ou personagem dos filmes de Cannes, aliás, foi uma temática da seleção oficial. Wagner Moura é brilhante como Marcelo, dosando com força e sutileza a melancolia e a esperança que vai poder criar seu filho pequeno em um país melhor.

"A felicidade que eu tenho por mim, por Kleber, pelo 'Agente Secreto', pelo cinema brasileiro, pela cultura brasileira, pelo fato deste filme ser mais uma peça, mais uma pedra que aproxima o espectador brasileiro, não só o espectador, mas o brasileiro em geral, da sua cultura, dos seus artistas, depois de um tempo muito difícil em que artistas e a cultura tinham perdido não só haviam perdido a importância porque foram bastante difamados. Ter hoje brasileiros torcendo pela vitória do cinema brasileiro internacionalmente, olhando para dizendo 'esse filme, esses artistas nos representam, como 'Ainda Estou Aqui'', me dá uma alegria profunda. Então, viva a cultura brasileira, viva aqueles que acreditam na importância da cultura para o desenvolvimento de qualquer país. O Brasil é o país da cultura, o país da arte. Viva o Brasil, viva os brasileiros. E vamos celebrar, aproveitar mais esse momento bonito do nosso cinema", declarou Wagner em vídeo gravado desde Londres, onde ele filma "11817", de Louis Leterrier.

Kleber, que já havia levado o Prêmio do Júri em 2020 por "Bacurau", em seu discurso de agradecimento pelo prêmio de Melhor Direção, observou que "meu país é um país de beleza, o Brasil. Eu estou muito feliz de estar aqui esta noite para aceitar este prêmio e acho que o Festival de Cannes é o melhor 'film show" do mundo". O cineasta, que fez questão de mandar um beijo para o Brasil e, principalmente, para o Recife em português, faz algo raro em "O Agente Secreto" ao não se furtar de escancarar as mazelas, violências e absurdos do cotidiano do Brasil que aprendemos a tratar como normalidade, mas também filmar as pequenas-grandes belezas como o Cinema São Luís do Recife, o companheirismo, a ética, o carnaval, a cultura popular e o afeto do brasileiro.

"O Agente Secreto" é um filme com uma história mestra e muitas histórias em suas entrelinhas. É fascinante ao ser também o olhar de um grande cineasta que, filme após filme, constrói sua filmografia sólida e é, acima de tudo, um cronista da cultura e da história do País.

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Delegação do Brasil (com ministra Margareth Menezes ao centro) na abertura do Marché du Filme do Festival de Cannes 2025
Delegação do Brasil (com ministra Margareth Menezes ao centro) na abertura do Marché du Filme do Festival de Cannes 2025 Imagem: Divulgação

Com os dois prêmios para o cinema brasileiro, em um ano em que o Brasil também foi o "Pais de Honra" do Marché du Film (o maior mercado de cinema do mundo), além do prêmio Women in Motion para Marianna Brennand, diretora de "Manas", e de outras participações em mostras paralelas, a necessária continuidade da produção do cinema brasileiro vai se tornando uma realidade. A temporada do Oscar 2026 e de outras premiações está começando e prêmios como este, além da distribuição internacional já garantida com acordos com a Neon (que vai distribuir o filme nos Estados Unidos) são estratégicos.

No Brasil, "O Agente Secreto" tem distribuição da Vitrine Filmes e chega aos cinemas no segundo semestre.

A memória, as consequências da violência cotidiana que permeia a vida das mulheres chegaram fortes como temas de "Sound of Falling", da alemã Masha Schilinski, que trouxe um dos filmes mais belos a Cannes este ano. Segundo longa da diretora, "Sound of Falling" é surpreendente, ousado e tem uma assinatura muito forte da cineasta, que certamente vai voltar à competição no futuro.

A necessidade de repensar o modo como vivemos chegou de forma radical e chocante no ousado "Sirat", do franco-suíco Oliver Laxe, que dividiu o Prêmio do Júri com Mascha. Dois prêmios merecidos e bem posicionados, que acenam para dois diretores em ascenção.

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Já o barroco e sonhador "Resurrection" (Ressurreição), do chinês Bi Gan, também trouxe a violência e os perigos de se sonhar em uma socieade que oprime os que pensam diferente. Mas o diretor conta essa história com uma grande homenagem ao próprio cinema e com uma suntuosidade impressionantes. É certamente o filme mais "cinema para encher os olhos" desta edição e merecia mais que a Menção Honrosa que lhe foi dado.

Quem merecia exatamente o Grande Prêmio do Júri ou até talvez Melhor Roteiro é o ótimo, porém nada ousado na forma, "Sentimental Value" (Valor Sentimental), do norueguês Joachim Trier. Direção impecável, elenco impecável, trama toda certinha para emocionar sem ser piegas, uma trama que vai do drama à comédia e que nos aproxima dos personagens e suas jornadas pessoais. O maior hype de Cannes 2025 tem tudo isso, mas lhe falta o grão do real, a dicotomia social que "O Agente Secreto" e "It Was Just An Accident" trazem.

O filme de Trier conta a saga de uma família de Oslo, cujas histórias giram em torno de uma mesma casa que vai passando de geração para geração (assim como em "Sound of Falling"). Quando a mãe da família morre, a casa fica vazia e, em vez de ser vendida, vai virar o set do novo filme do pai cineasta, que se separou há tempos esta mãe e voltou para a Suécia, onde tinha família, deixando as duas filhas (hoje adultas ) com um imenso vazio. A volta desse pai vai mexer em traumas, rancores e por à prova a capacidade de perdão (mais uma vez ele) de todos. Um filme que aquece o coração e que, anotem, certamente vai estar no Oscar 2025.

Kleber Mendonça Filho e a atriz Nadia Melliti com suas Palmas do Festival de Cannes 2025
Kleber Mendonça Filho e a atriz Nadia Melliti com suas Palmas do Festival de Cannes 2025 Imagem: Flavia Guerra

Quem levou o prêmio de roteiro, muito questionável, foram os veteranos Jean-Luc e Pierre Dardenne, que levaram já a Palma de Ouro por "Rosetta" em 1999 (ano em que Pedro Almodóvar era favorito com "Tudo Sobre Minha Mãe", que levou Melhr Direção), entre outros prêmios no festival em outros anos. Desta vez, o prêmio veio por "Jeunes Mères" (Jovens Mães), um filme que acompanha mães jovens em um abrigo de Liège, na Bélgica. Filme coral, divide a ação entre várias garotas, seus bebês e os desafios que cada uma enfrenta, como o abandono do parceiro, da família, a decisão de entregar a criança para a adoção ou seguir lutando para criá-la. "Jeunes Mères" segue a tradição dos Dardenne de construir sempre uma narrativa muito natural, em que aparentemente há pouco ou nenhum roteiro estabelecido. Talvez tenha sido esta leveza que seduziu o júri.

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Para encerrar, o único prêmio para uma produção francesa foi para Melhor Atriz. Nadia Melliti vive uma jovem franco-argelina de 17 anos que luta contra o desejo que sente por mulheres no drama dirigido por Hafsia Herzi.

Ao final, Juliette Binoche, Halle Berry, Payal Kapadia, Jeremy Strong, Hong Sang Soo, Alba Rohrwacher, Leila Slimani, Dieudonné Hamadi e Carlos Reygadas, fizeram boas escolhas e abrem agora caminho para que os premiados continuem sua carreira internacional e, com sorte e muito trabalho, cheguem com fôlego na temporada do Oscar 2026, sem nunca esquecer que, tanto quanto sucesso de público e prêmios, o cinema precisa ter olhar crítico, liberdade, sonhos e ousadia.

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