Alma Imoral do Brasileiro: peça ressalta nossa contradição e nudez selvagem
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A peça "Alma Imoral", baseada no livro homônimo do rabino Nilton Bonder e adaptada por Clarisse Niskier para o teatro, está a dezoito anos em cartaz. Com a supervisão de Amir Haddad e representada pela própria Clarisse, é uma obra densa e bem-humorada, que desfia uma série de ocorrências sobre a fugacidade da situação.
Os contos, movidos por alta dosagem de sabedoria rabínica, giram em torno de um grande tema: a não identidade e a contradição da alma, seu traçado seco sobre a água.
A fidelidade infiel pela qual não há tradição sem traição, nem traição sem tradição.
Ao contrário do que afirmou a crítica, não se trata de um monólogo, mas de um verdadeiro diálogo —tanto por momentos cruciais nos quais a plateia tem voz e voto e quanto pela tese da peça de que a alma tem uma estrutura dialogal: fala consigo ao se dirigir ao outro e se dirige ao outro ao falar consigo.
Sim, meu caro leitor, isso também quer dizer que há diálogos que são monólogos. São aqueles em que os envolvidos trocam palavras, mas não mudam de posição como efeito.
Recentemente, Clarice declarou:
"Quando me perguntam o que sinto fazendo a peça há tanto tempo, nunca sei responder algo muito objetivo. O tempo é um mistério tão grande. Sei que hoje estou indo ensaiar. Ensaiar? Sim, ensaiar. Preciso passar o texto, me encontrar com o texto e com a dança da Alma para me apresentar atualizada para vocês. Objetivamente, posso dizer uma coisa: a memória é um afeto composto de milhões de partículas atemporais. A memória não se repete, só existe no agora. Sim, é um paradoxo. Por ser memória, nunca se repete, tal a quantidade de ângulos que a compõe. Cristal infinito que flana dentro de nós e em nós não é um órgão, nem um osso, nem um músculo; é o que é. Um conjunto, uma anatomia, uma canção que se estende pelo silêncio, e no silêncio se envolve."
A peça é um sucesso compartilhado por milhares de espectadores, coisa extremamente curiosa e notável, dadas o enredo erudito e filosófico —mais um exemplo de que nossa cultura, assim como nossa educação pós-inflacionária, quer qualidade.
É lamentável que a peça seja "não-recomendável para menores de 18 anos", já que tem vocabulário elegante, conteúdo inteligente e argumentação leve sem qualquer exagero, obscenidade ou palavrão para arrancar riso fácil. É, na verdade, uma experiência formativa que deveria ser obrigatória para menores de 18 anos.
A banalidade da recomendação é, obviamente, porque a personagem está nua —ela articula diferentes heterônimos e diferentes vestimentas morais. Mas, toda nudez será castigada.
Parece mais um exemplo do que Vladimir Safatle vem chamando de juizado de pequenas causas para temas de natureza ética em nosso país. Ou seja, como se tivéssemos apenas a lei e o caso. Basta saber como aquele caso entra em qual regra. Se não entrar, muda-se a regra ou força-se o caso.
Crianças não devem ter a experiência da nudez adulta? No atacado sim, no varejo não. Às vezes, o certo é o errado, às vezes, o errado é o certo.
Será muito interessante para quem viu a peça 18 anos atrás retomar a mensagem agora, quando passamos daquele Brasil que não existe mais para este onde a imoralidade da alma virou o novo universal. Nossa paixão pelo "justiciamento", nossa simplificação moral e nossa incapacidade de enfrentar situações de ambiguidade e indeterminação passaram de exceção à regra.
A peça que prometia em 2008 uma verticalização da reflexão moral em plena crise do neoliberalismo tornou-se agora um ensaio de ficção política.
Não que fôssemos mais críticos ou éticos 18 anos atrás, é possível que fosse o contrário, mas nossa disposição à incerteza diminuiu e, com ela, a tolerância.
Em certo sentido, a peça aborda este problema ao mostrar, em diferentes situações, como a alma é este hiato entre a lei e a sua transgressão.
O sucesso da peça é merecido, porque ela aborda um aspecto central da brasilidade: quando obedecer é trair.
Adoramos confiar ou desconfiar das regras para não nos reconhecermos nelas.
Em oposição à nossa paixão por contratos instáveis — ou pela aplicação perpétua deles em nome da conveniência —, a peça nos convida ao que é próprio da reflexão ética: a paradoxal criatividade dos atos humanos.
Daí a suprema ironia da interdição para menores.
Como outros excessos do "judicialismo" ignorante, presume-se que alguém de desprevenido, ingênuo e de espírito virgem veria essa peça, por isso a necessidade de advertir para o choque causado pela nudez — o corpo de uma mulher exposto em suas partes pudentas.
É só uma recomendação com baixo poder coercitivo, mas que exemplifica nossa infantilização diante do estado. É sintoma de nosso dirigismo cultural. Como se, só pudesse haver censura ou livre iniciativa.
Ao confiar nesta redução, num catálogo de perversões pré-estabelecidas, o que está fora da regra se torna automaticamente permitido ou desejável. Não é só que moral e legal andam em desavença permanente in terra brasilis, deixam de ser propriamente definidos.
Como a peça mostra de forma irretocável, a ética nasce do reconhecimento da imoralidade da alma e da insuficiência da moral e da lei para dar conta dos atos humanos.
Em vez do diálogo tenso e arriscado — que reconhece a cultura como experiência potencialmente desconfortável e que exige escolha, preparação e apreciação—, temos na recomendação de idade uma lógica do consumo: devemos ser advertidos sobre a presença de substâncias nocivas no produto a ser consumido. Neste caso, a nudez.
Fora do que é seguro para a vida e o ambiente, na lei e na ordem, o que nos resta? O mercado?
Os emissários da Inquisição Católica voltaram do Brasil, no século 17, com uma queixa curiosa: os brasileiros confessavam seus pecados de modo excessivamente natural, com relatos de sodomias sem culpa ou lascividade. A infidelidade era dada e inevitável, descrita em abundância de detalhes, mas sem tom de confissão. Isso dificultava a penitência, porque não havia interioridade — eram como impostos, mas não carregam peso moral na alma.
Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os povos indígenas daqui teriam outra lógica para pacto, aliança, inimigo ou amigo —e isso foi um dos maiores entraves à colonização portuguesa no século 16. Para tupinambás e tamoios, a troca e a transformação pareciam importar mais que a palavra e a crença. Por isso, se deixariam conquistar facilmente para depois se revelarem instáveis em suas reviravoltas e em sua paixão pela vingança.
Aos olhos dos europeus, isso significava uma perturbação fundamental na relação com a crença: em vez de transformar as circunstâncias segundo a essência da alma, transformava-se a própria alma conforme as circunstâncias. A ausência de lei e rei talvez não passasse de um excesso de inconstância na alma.
Portanto, a peça —universal, existencial e feminina— também é sobre a inconstância de nossa alma selvagem.
Convém permitir que um pouco dessa nudez (talvez indígena) se coloque para nossos menores, sem que isso ocorra em subordinação à lei. Precisamos considerar a experiência dentro do sincretismo histórico do nosso budismo-afro-judaico-cristianismo.
A escolha forçada e redutiva — tantas vezes imposta pelos poderes instituídos — entre lei ou violência poderia ser repensada a partir da imoralidade brasileira da alma.
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