Aceleração, culpa e romantização: o tempo que sobra (ou falta) para as mães

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Foi a maternidade que me levou a ter outra relação com o tempo. Mesmo antes de ser mãe, tentando engravidar do meu primeiro filho, precisei lidar com a "dica" de que, com a vida corrida daquele jeito, provavelmente não haveria espaço para uma criança chegar. Na época, meu terapeuta olhou minha agenda e, sutilmente, sugeriu que eu precisava abrir espaço de tempo na vida para permitir que Miguel viesse.
Foi a maternidade que me mostrou que —como diz Antonio Cândido— o tempo não é um recurso, mas o tecido da própria vida e deveríamos ter direito de desfrutar do tempo para construir nossos afetos.
Também é de Cândido a ideia de que qualquer luta por justiça social deve começar pela luta pelo tempo. Mais tarde, na minha pesquisa, chamei isso de luta por justiça temporal. Um dia explico melhor esta ideia a vocês.
Também foi a maternidade que fez o tempo espiralar. Sendo mãe, entendi melhor a minha mãe. E as mães como um todo. E olhei para as histórias de vida das mulheres da minha família, para a forma como nos cuidamos umas das outras. Olhei e vi minhas avós, as batalhas que enfrentaram e o quanto eu carrego em mim esta ancestralidade e o quanto ela está viva em meu corpo e em minha bagagem emocional.
Foi a maternidade que me trouxe de volta ao tempo do meu corpo. É de Alice Ruiz a ideia de que "depois que um corpo comporta outro corpo, nenhum coração suporta o pouco". E assim foi. Depois que gestei dois filhos, não me contento com migalhas. Meu corpo tomou mais consciência da sua potência. Me reaproximei da dança, da música, de minha origem, de minha terra, de minha raiz pernambucana.
Também este mesmo corpo entendeu que é natureza. E que, portanto, é tempo vivido e vívido. Uma querida amiga citando Stanley Keleman me ajudou recentemente a entender que "o corpo não é um objeto no espaço, mas um processo no tempo". E tendo atravessado duas gestações e dois trabalhos de parto, a maternidade me ensinou que somos tempo natural da vida.
Foi também a maternidade que me conectou ao tempo da infância, este tempo que é puro ser, tempo de brincar, de fluir, este tempo absolutamente encantado das crianças. O tempo da infância é este tempo sagrado que não está conectado ao nosso tempo cronológico (ainda que estejamos cada vez mais cedo corrompendo este tempo com nossa sanha de aceleração).
Foi também a maternidade que me apresentou o tempo dos afetos e da comunidade. Encontrei o coletivo do provérbio africano "é preciso uma vila para criar uma criança". Com outras mães, amigas, famílias e pessoas do meu entorno, fui tecendo uma forma de vida mais comunitária, focada no simples e no que importa: estes afetos e vínculos que são até hoje remédio para os dias mais difíceis e âncoras que ancoram minhas coragens.
A maternidade me mostrou o tempo como objeto de pesquisa e missão de vida. Foi quando meu segundo filho nasceu que nasceu o Guia Desacelera SP, iniciativa que tirava do papel a pesquisa sobre o slow e dava vida ao movimento que depois geraria a Escola do Tempo e o festival Dia sem Pressa e desaguaria, anos depois, na fundação do Instituto Desacelera.
Tudo isso é uma imensa potência da maternidade, que tive o privilégio de poder experimentar. E quem acompanha meu corre sabe que é preciso um esforço permanente para reconhecer e honrar estas descobertas no cotidiano que nos espreme, amassa e nos atira na pressa, na desatenção e na produtividade e no desempenho e da sobrevivência todos os dias.
Nem sempre eu consigo sustentar esta presença e essa condição que precisam ser permanentemente cultivadas. Esta busca constante semeou toda minha pesquisa e todo meu trabalho por uma vida mais desacelerada não apenas das mulheres, mas de todos.
O plot twist de toda esta história é o seguinte: hoje, consigo olhar e ver toda esta potência, mas também enxergo que tudo isso aconteceu porque a maternidade acelerou minha experiência.
Sim. Na prática, a maternidade acelera a vida das mulheres e cobra delas, ao mesmo tempo, todas estas outras potências do tempo. Sem oferecer condições (sociais, econômicas, culturais e emocionais) de sermos estas mães de outros tempos, a sociedade nos cobra que sejamos estas mães com tempo.
Por isso, foi também a maternidade que me fez enxergar que a conta tempo + vida profissional + dinheiro + trabalho de cuidado não fecha para nós. Foi quando comecei a minha pesquisa sobre o tempo, porque tinha certeza de que não seria possível me dedicar a um filho se mantivesse os mesmos padrões de trabalho que tinha antes.
Quando Miguel filho mais velho nasceu, o tempo encarnou. Aquele ser crescendo era uma nova medida de tempo para mim. Na época, comecei um debate sobre o empreendedorismo entre as mães, não exatamente como uma escolha, mas como a saída para mulheres que desejavam se dedicar a seus filhos e que eram —de alguma forma— "expulsas" do mercado de trabalho que não abraça a maternidade com flexibilidade, políticas públicas e apoio formal.
Empreender era a forma que algumas mulheres encontravam de —supostamente— dedicar mais tempo e mais atenção a seus filhos (o que às vezes se mostra uma cilada, mas não vou conseguir me aprofundar aqui. Podemos voltar a este assunto em outro texto).
Para ficar em apenas um exemplo, conseguem perceber como é perverso que a OMS recomende pelo menos 6 meses de amamentação exclusiva e até 2 anos de amamentação prolongada e não exista nenhum mecanismo legal que garanta esse direito para todas as mulheres e todos os bebês?
A maior parte das mulheres não consegue (mesmo quando em empregos estáveis, quando acessam a licença de até 6 meses). E a responsabilidade recai sobre a falta de políticas públicas ou sobre as empresas? Não, né? Recai sobre as mulheres, claro.
E as férias escolares? Como pode as escolas terem um período de férias muito superior a qualquer período de férias (ideal) em um universo de leis trabalhistas sendo plenamente atendidas? Como é esta realidade para as profissionais liberais, profissionais de trabalho doméstico e outras que se viram para dar conta de tudo? E como é a vida das mães que exercemos a maternidade de forma solo?
Estes exemplos mostram que a conta de tempo já não fecha.
Foi a maternidade que me inspirou a desenvolver a pesquisa sobre aceleração e não foi à toa. Não me conformo com o fato de a maternidade ser um trabalho invisível, não reconhecido e não remunerado, que ocupa boa parte do tempo das mulheres que ainda precisam dar conta de todo resto e sorrir e acenar.
Pesquisas recentes vêm apontando como isso mexe com a vida e a carreira das mulheres, a saúde mental e a vida de todas nós.
Pensando no conceito de aceleração como "realizar mais coisas em uma mesma unidade de tempo", a maternidade gera mais trabalho em uma mesma "quantidade de tempo disponível" e sem remuneração. Não precisa muito esforço para entender que não é uma conta justa. E ainda é preciso colocar nesta equação todo saldo emocional que nos é exigido, com o discurso sobre "tempo de qualidade" e atenção aos filhos.
Ora. Se não temos estas condições garantidas por políticas e direitos, não é cruel exigir um ideal de mãe dedicada e maternidade romântica destas mesmas mulheres? E talvez seja importante reforçar que quanto mais atravessadas por marcadores sociais de desigualdades (de classe, região, orientação sexual, por exemplo), mais sobrecarregadas estamos.
A pesquisa "Tempo de cuidar", da ONG Oxfam, mostra que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado —uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global— mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo.
O estudo também aponta que em 2050, o Brasil terá cerca de 77 milhões de pessoas dependentes de cuidado (pouco mais de um terço da população estimada) entre idosos e crianças, segundo dados do IBGE. Você consegue imaginar nas mãos de quem estará este trabalho?
Já a pesquisa Esgotadas, feita pela ONG Think Olga demonstra uma relação direta entre sobrecarga e insatisfação. As mulheres estão adoecidas de excesso e vivem na pele de forma muito mais pesada que os homens, os efeitos da sociedade do cansaço.
Os dados mostram que uma mulher sobrecarregada com o cuidado tem menos tempo ou condições para se dedicar ao trabalho remunerado. Uma mulher sem renda digna tem precarizados seu meio de vida e suas condições de cuidar.
O relatório do estudo explica que o "trabalho de cuidado envolve muitas horas dedicadas ao cuidado com a casa e com as pessoas: dar banho e fazer comida, fazer faxina, comprar os alimentos que serão consumidos, cuidar das roupas (lavar, estender e guardar), prevenir doenças com boa alimentação e higiene em casa, cuidar de quem está doente, fazer café da manhã, almoço, lanches e jantar para os filhos, educar, e isso todos os dias, por horas a fio".
Aponta também que no Brasil, as mulheres dedicam o dobro de tempo dos homens nas tarefas de cuidado, segundo dados do IBGE. Em um ano, as mulheres gastam 1.118 horas (47 dias) nessas tarefas, enquanto os homens dedicam apenas 572 horas (23 dias). 57% das mulheres de 36 a 55 anos cuidam de alguém; e 50% das mulheres pretas e pardas cuidam de alguém.
Neste levantamento, a sobrecarga de trabalho doméstico e a jornada de trabalho excessiva foram o segundo fator apontado pelas entrevistadas como tendo maior impacto em sua saúde emocional, atrás apenas das preocupações financeiras, o que corrobora a ideia de que a maternidade acelera a vida das mulheres e —ao mesmo tempo— exerce sobre estas mesmas mulheres uma pressão por disponibilidade.
É domingo de Dia das Mães e queria ter escrito um texto de celebração. Ele é. Mas é também (como a vida, ambivalente) um texto para refletirmos sobre o tempo das mães.
A maternidade pode ser uma imensa potência de (re)conexão com outras concepções de tempo. Mas enquanto não mudarmos a forma como olhamos para o trabalho de cuidado e seguirmos prescrevendo a maternidade ideal como se fosse responsabilidade de cada mulher "se organizar" para ter tempo, estamos reproduzindo violência e romantizando o sofrimento e a aceleração das mães.
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