Michelle Prazeres

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Opinião

Jogar para respirar: como os jogos de tabuleiro nos ajudam a desacelerar

Uma das coisas mais bonitas de trabalhar há tanto tempo com o tempo é ter contato com as múltiplas formas de perceber, sentir e medir o tempo.

Relógios foram feitos para controlar o tempo. Nossos ancestrais contavam o tempo por estações, cerimônias e ciclos; não minutos. O pensamento colonial colonizou também nossos ritmos. O tempo não é apenas linear e cronológico. Ele é cíclico, holístico, relacional.

É preciso desenvolver algumas saídas para dar conta da aceleração produzida por um modo de vida que não só mede o tempo em unidades de tempo (segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas, etc), como tenta controlar o tempo (não só medindo, mas planejando e pensando em técnicas de "gestão").

Algumas destas saídas —que eu gosto de nomear de frestas ou fendas ou fissuras no tempo cronológico— são formas de desacelerar, mas também de promover regeneração temporal.

Explico: a pressa está internalizada no nosso corpo condicionado pela aceleração. Às vezes corremos não porque é preciso correr, mas porque estamos no automático. E algumas ações são capazes não apenas de desacelerar estes corpos acelerados e automatizados, mas também regenerá-los, mostrando a eles que não são máquinas, mas corpos humanos. E "treinando" estes corpos para uma qualidade de presença e atenção que a aceleração nos faz perder.

Por exemplo, quando descansamos, "lembramos" o corpo de que ele pode parar. Quando nos desconectamos, lembramos o corpo de que podemos dedicar atenção plena a algo. Quando ritualizamos, lembramos o corpo de que ele não é sozinho, mas vivemos em comunidade e somos seres coletivos. Quando nos relacionamos com a natureza, percebemos que também somos feitos de ritmos, ciclos e que as coisas têm seu próprio tempo. É comum sair de situações como estas como uma sensação prazerosa, de que conseguimos desfrutar de um momento com qualidade. Ou contemplar aquele instante com calma.

Em mundo acelerado também pelas tecnologias, precisamos ter direito à desconexão. Ficar um tempo offline é uma das formas de regeneração do corpo e da atenção.

Estes dias, eu estive com um grupo de amigos para jogar um jogo de tabuleiro e me surpreendi com a minha própria sensação de tempo. Quando a partida terminou, tínhamos ficado três horas ali, sem perceber o tempo passar.

Ainda que alguns jogos (como este que jogamos) sejam baseados na lógica da performance e orientados pela ideia da competição, o que quero tratar aqui é da ausência de uma crononormatividade e da sensação de desaceleração que existiu, apesar destes aspectos.

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Enquanto jogávamos, ninguém olhou o relógio. O máximo que aconteceu foi uma ou outra pessoa mais "acelerada" pela vontade de jogar cantar pro amigo "sua vez, vai". Mas o contrato de tempo (cunhei esta expressão na minha pesquisa para nomear os pactos relacionados ao tempo que regulam as relações, mas que nem sempre são declarados ou combinados. Um dia falo mais sobre eles aqui) do jogo é o da sua própria duração.

Ninguém começa a partida e diz "temos duas horas". A gente começa a partida e ela dura o quanto precisa durar. No seu próprio ritmo. Antes da partida, montar o tabuleiro e distribuir as peças é um ritual. A explicação das regras é uma aula. E depois da partida, tem a resenha da partida. Que dura mais um tanto de tempo não medido, não controlado, não gerenciado. E depois, tem o ritual de guardar o jogo, peça por peça, saquinho por saquinho em cada nicho da caixa carinhosamente preservada.

Neste dia, quando saímos de lá, percebi minha condição de atenção e presença diferentes. Fiquei curiosa não apenas por "não ter sentido o tempo passar", mas por me perceber mais presente, menos acelerada, mais relaxada. Tinha ali um tipo de contentamento que localizo nos momentos em que consigo desacelerar.

Coincidência ou não, este jogo aconteceu na semana em que estava há um tempo tentando uma entrevista com o Arnaldo, terapeuta e professor considerado referência nacional em educação com jogos de tabuleiro, que tenho a sorte de poder chamar de amigo e parceiro no movimento pela desaceleração da vida.

Arnaldo me contou os planos para o Simdoff (Simpósio Temático da Diversão Offline), evento que acontece sob coordenação dele no dia 20 de junho e antecede a programação tradicional do Diversão Offline (DOFF), maior evento de jogos de tabuleiro da América Latina, que esse ano completa 10 anos.

Compartilho com vocês a minha conversa com ele.

Arnaldo V. Carvalho é mestre e doutorando em educação, é cofundador da rede docente Ludus Magisterium e autor dos livros "Shiatsu Emocional", "Jogos de Tabuleiro na Educação" e "Pedagogia da Curiosidade".

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Diversão offline. Por que um evento inteiro sobre esse tema?
No início dos anos de 2010, a internet havia se tornado uma febre, afetando as relações presenciais. Em contrapartida, surgia um fenômeno de "nicho globalizado": imensas comunidades de pessoas do mundo inteiro interessadas nos novos jogos de tabuleiro que alcançavam um boom de lançamentos e novas propostas. O Brasil dessa época entrou no nicho principalmente através da juventude classe média, que do mesmo modo que descobriu o jogo de RPG nos anos de 1980, agora entrava nesse hobby cheio de inovações.

Parte do crescimento dessa comunidade de jogadores se deveu ao fato de que, embora nunca se tivesse consumido tanto entretenimento em formato digital, as pessoas estavam cada vez mais encontrando nos novos jogos de tabuleiro um modo de se divertir e socializar ao mesmo tempo, resgatando um "elo perdido" entre descontrair e estar/fazer junto. No Rio de Janeiro começaram a pipocar eventos abertos, em lanchonetes, faculdades, escolas e outros, onde pessoas comuns levavam seus jogos —de tabuleiro, RPG e cartas— os ensinavam e trocavam experiências.

O fenômeno multiplicou a quantidade de jogadores rapidamente e levou ao surgimento de diversas editoras especializadas; percebendo esse impulso, a empresária Fernanda Sereno teve a ideia de fazer uma convenção de maior porte para o hobby, como já acontecia em países da Europa e nos Estados Unidos. Foi nesse contexto que o Diversão Offline surgiu, em 2015.

É um evento de jogos, mas também um simpósio?

O DOFF é um evento sobre jogos de tabuleiro, e sempre se interessou em apoiar a educação lúdica. Nesse ano comemorativo, a maior das ações de apoio foi a criação de um dia extra totalmente dedicado à educação, com escolas e professores podendo visitar todo o evento com exclusividade. E o Simpósio SIMDOFF é uma ação vital dentro desse dia, ocorrendo "dentro" do DOFF.

Há três anos, comecei a participar da curadoria que seleciona e propõe atividades no Palco Doff, um auditório que apresenta palestras e painéis temáticos relacionados ao mundo dos jogos de tabuleiro. Nesse ano que marca os dez anos de Diversão Offline, porém, acumulo também a função de organizar o primeiro simpósio temático que ocorrerá no primeiro dia do evento, o Simdoff.

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Esse simpósio é uma parceria entre o DOFF e a Universidade Federal do Paraná, e conta com pesquisadores e professores da área de design, psicologia, educação e inclusão. Como pesquisador de educação e jogos preocupado com a aceleração social de nossa sociedade, acabei propondo uma participação pessoal no Simdoff em torno do assunto e o papel dos jogos de tabuleiro enquanto "ideias para adiar o fim da calma" (parafraseando Ailton Krenak).

Qual a relação entre tempo offline e tempo de regeneração?
Quando a gente pensa em regenerar, fala-se sobre criar de novo, o que também significa que não estamos falando de voltar atrás no tempo. Embora não seja o único fator acelerante, é evidente que a vida online tem impactado nas mudanças comportamentais individuais e coletivas, a ponto de pesquisadoras de ponta como a professora de sociologia do MIT Sherry Turkle, inicialmente entusiasta das relações virtuais, passar a publicar sobre a importância de reivindicarmos momentos de conversas reais.

Nesse sentido, a antiga prática do jogar jogos de tabuleiro, agora renovada com uma maior variedade e novas possibilidades de encontro e interação, é uma forte força impulsionadora de regeneração do nosso lidar com o tempo, indo na direção de um fazer saudável, que une as pessoas, desacelera e simultaneamente exercita habilidades emocionais, cognitivas e sociais.

Por que precisamos regenerar?
"Acelerar" fala de agir fora de nossa velocidade natural --o ritmo basal de pensar agir que caracteriza a humanidade. O homo sapiens, sabemos, tem como um importante distintivo a sua capacidade de reflexão, o que exige um "deter-se" sobre algo.

A atenção plena deriva daí. Acelerar e desacelerar, naturalmente é um caminho de mão dupla entre como nos relacionamos com a realidade, mas também de como a realidade se apresenta, em suas diferentes velocidades.

O mundo digital se apresenta como um cenário recheado de estímulos, informação, velocidades e tempos com os quais não temos condição de lidar, daí que a "mão dupla" de interação entre ambiente e meu modo de ser começa a construir camadas de ansiedade em torno daquilo.

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Em miúdos: no virtual, temos a velocidade de circulação (quando tudo vai e vem de modo instantâneo ou semi instantâneo) e torna as pessoas habituadas a essa velocidade --o que tem provocado uma "turma 2x" que cada vez menos consegue ouvir e processar em longo prazo; temos ainda o trinômio alto volume, fragmentação e rasidão da informação (que leva ao pensamento fragmentário e mais uma vez, menor disposição para a reflexão). Podemos acrescentar o que ocorre de acelerante em relação ao fazer lúdico --quando os games (jogos eletrônicos) também "queimam etapas" que fazem parte dos jogos de tabuleiro.

Que aspectos dos jogos offline podem ajudar as pessoas a desacelerar?
A coisa já começa pela previsão do tempo para a atividade, o deslocamento até o local onde o jogo vai acontecer, a chegada, os cumprimentos, a nova fisicalização das relações. No online, nada disso acontece, estamos a um clique de distância, o que oferece muitas vantagens em muitos momentos, mas, como dissemos, nos condiciona a essa facilidade.

Não seria justo dizer que as pessoas estão mais preguiçosas de sair e se deslocar, especialmente para momentos sociais. Mas estamos já há longo tempo sendo condicionados a esse modo de viver —o que se intensificou sobremaneira com a pandemia.

Nos jogos eletrônicos, não é preciso ir buscar o jogo na prateleira, colocá-lo na mesa, organizar seus componentes, bem como não é necessário arrumar o jogo na caixa quando ele termina. Quando se perdem esses momentos intermediários, perde-se a possibilidade de transitar entre os pensamentos gerais —cheios de conteúdo social— e o foco no jogo.

Além disso, para jogar um novo jogo, é preciso aprender com alguém que explicará o jogo ou lendo suas regras. Ambas as situações exigem tempo e "escuta", que pode envolver dúvidas e mesmo erros de explicação ou interpretação.

Esses problemas não costumam estragar a experiência de jogar, mas tornam mais uma vez o processo de jogar sujeito às subjetividades que estão presentes na relação entre as pessoas que jogam. Além disso, temos, ainda antes de uma partida começar, o contato físico com os componentes do jogo. Os cheiros, o peso, as texturas, ao ultrapassarem a experiência visual, permite que a mente se ancore em um tempo mais consistente do que o tempo líquido-efêmero do qual Bauman tanto nos chamou atenção.

Mas isso não é tudo: quando se jogar, é preciso esperar a vez, é preciso pensar enquanto o outro está a jogar —o que pode envolver uma crise decisória ("na minha vez, devo comprar as cartas, mover minhas peças, ou investir outros recursos?"). Mais uma vez, o tempo aparece para calibrarmos o foco, refletirmos, bebermos água e até, fazermos uso de alguma estratégia social, um "metagame" que pode envolver uma piada ou um blefe vitimista ("puxa, vocês já venceram, coitado de mim")

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O jogo acabou? Guardar o jogo é mais um intermezzo, o ritual de fechamento de um fazer que libera integralmente a outros fazeres. Não se acumulam fazeres, não temos a mente pendurada com diversos tasks incompletos, e isso se traduz num exercício de foco e vivência do tempo presente que é altamente desacelerante.

Para quem não entende nada disso, mas está com vontade de mudar e começar. Como posso começar?
O jeito mais fácil é descobrindo amigos que já gostam de jogar e de compartilhar esse gosto. Mas se não encontrar ninguém mais próximo, o lado positivo do online está aí para isso! São muitos os eventos e casas especializadas no tema (inclusive alguns que associam jogo de tabuleiro e gastronomia, sempre uma interessante combinação!), que já existem em praticamente todas as capitais do Brasil e dezenas de cidades, senão mais.

Uma imensa comunidade hobbista está sempre disposta a apresentar jogos e compartilhar esse hábito saudável com outras pessoas. Assim, localizar algo próximo e se aventurar é algo que vale a pena.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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