Glaucoma: por que as pessoas não usam colírio direito
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Um ou dois em cada cinco brasileiros que têm glaucoma não pingam direito o colírio para tratar essa condição. Depois de uns seis meses, passam a se esquecer pelo menos uma vez por semana de usar o remédio. Deixam para lá se já se deitaram, por exemplo. E por aí vai.
Agora um estudo, este divulgado na Scientific Reports, publicação do grupo Nature, informa que 20,9% das pessoas — ou seja, mais ou menos um quinto — abandonam completamente o tratamento após no máximo um ano.
Qual será a dificuldade para seguir à risca a prescrição do oftalmologista? Afinal, essa gente fecha os olhos para o seguinte: estamos falando da principal causa de cegueira irreversível, aqui e em qualquer lugar do mundo. E ela acomete 2 milhões de brasileiros.
Aperto silencioso
"O glaucoma é uma doença de origem genética, que leva ao aumento da pressão intraocular", define o médico Ricardo Palleta Guedes, pesquisador da Universidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oftalmologia, ele se dedica a investigar essa condição desde os tempos de residência, quando ganhou uma bolsa e foi estudá-la na França.
A pressão a que o doutor se refere nada tem a ver com a sanguínea. O líquido em questão é o humor aquoso, que preenche todo o globo ocular. "Ele vai gotejando em seu interior durante as 24 horas do dia. Se o olho não tivesse um sistema de drenagem, ele explodira de tão cheio."
Calma, um filme de terror desses não acontece. No olho normal, a mesma quantidade de líquido que é produzida é constantemente escoada. Se bem que o enredo da vida real também deveria deixar quem tem glaucoma apavorado — e, portanto, sem marcar bobeira. "Nesse indivíduo, é como se o sistema de drenagem fosse entupindo gradativamente e, como o líquido fica preso lá dentro do olho, sem ter por onde sair, ele vai apertando o nervo ótico. Este, então, vai morrendo aos pouquinhos." Diga-se: não há tratamento que o "ressuscite".
O que se perde primeiro
A primeira a sair perdendo é a chamada visão periférica. E eu mesma já entendi essa história de um jeito errado no passado, pensando que a sombra crescesse na lateral externa, de fora para dentro, como se a gente fosse perdendo a capacidade de olhar de esguelha. Nada disso!
"O nervo ótico tem áreas de maior fragilidade e que, portanto, sucumbem à pressão alta mais depressa que outras", explica o doutor Guedes. "Coincidentemente essas áreas mais frágeis são as responsáveis pelas imagens que enxergamos na periferia nasal." Ou seja, se o indivíduo fechar um olho, ele talvez notará que, em seu campo de visão, está escurecendo a parte de dentro.
No entanto, abrindo os dois olhos, o cérebro faz o serviço de sobrepor as imagens. Ainda bem, ou veríamos o mundo em dose dupla! Ao fazer isso, porém, dificilmente alguém com início de glaucoma percebe algo diferente, porque a sobreposição supera a deficiência.
As partes centrais do campo visual são aquelas que recebem sinais de áreas mais resistentes do nervo ótico. Logo, são das últimas a apagar as luzes.
"A variabilidade e o ritmo da perda da visão costuma variar de pessoa para pessoa", nota o oftalmologista. E, até lá, nada dói, nem incomoda. Resultado: a doença normalmente é diagnosticada em fases muito avançadas.
Claro, tudo seria diferente se aquela famosa visita anual a um oftalmologista estivesse na agenda. Mas muita gente procura o especialista apenas quando sente que está na hora de trocar o grau dos óculos. Pena.
Mais de um colírio
Quando o glaucoma é diagnosticado, de preferência bem no início, ele pode ser tratado com colírios, com laser e até com cirurgia. Mas a maioria dos casos é controlada pingando algumas gotas de remédio mesmo.
O medicamento pode agir de três maneiras. Segundo o doutor Guedes, existem colírios que reduzem a produção do humor aquoso, compensando a lentidão do sistema de escoamento. "Imagine uma pia em que o ralo está parcialmente entupido. Para evitar que ela transborde, você diminui a vazão da torneira", compara o oftalmologista. "Ora, se mantivesse a torneira bem aberta, a situação sairia do controle."
Se, mesmo assim, o problema não se resolve, a saída é apelar para para colírios que dilatam os canais de drenagem. "Há outros, ainda, que limpam essas vias por onde o líquido vai embora, procurando mantê-las desobstruídas", conta o médico.
Enquanto o glaucoma ainda engatinha, é possível controlar tudo com um colírio só — diminuindo a produção do humor aquoso ou melhorando o seu escoamento. "Só que, na medida em que a doença avança, precisamos associar dois ou três tipos", observa o doutor Guedes. "É, aliás, o que mais vemos na prática."
Por isso, os pacientes mais velhos às vezes se confundem, até porque já usam várias medicações para outras questões de saúde. E, até mesmo entre os mais moços, com seus 40 ou 50 anos, bate o desânimo: afinal, é necessário disciplina para pingar mais de um colírio diariamente em horários bem determinados. Os homens são piores nesse quesito: até 29% deles se esquecem vez ou outra da medicação ou não a levam para o trabalho. Para complicar, existem medicamentos que precisam ser mantidos na geladeira. É que seus princípios ativos iriam para o espaço com o calor.
Apesar disso tudo, os colírios podem dar conta do recado. Isto é, desde que o cidadão entenda que, assim como um indivíduo com diabetes precisará de remédio pelo resto da vida e poderá passar mal se deixar de usar insulina um único dia, ele também enfrentará apuros se não seguir as recomendações médicas.
Se o tratamento é largado depois de um tempo, a pressão intraocular volta a subir e a matar o nervo ótico, como se nunca aquele olho tivesse recebido uma gota de colírio. E, se a pessoa costuma gotejá-los só de vez em quando, pulando um dia ou outro, a pressão intraocular vive numa gangorra. "No final, fica descontrolada e provocando prejuízos do mesmo jeito", garante o doutor Guedes.
Ardência e olho seco
Não dá para esconder: "O colírio para glaucoma arde na hora em que cai olho e, mesmo depois, pode existir algum desconforto", assume o oftalmologista mineiro. "Isso porque é capaz de provocar olho seco, problema que pode dar aquela impressão de areia arranhando quando você pisca."
Segundo ele, a sensação pode ser leve. No entanto, para quem não sentia nada antes, quando ignorava a pressão intraocular nas alturas, a ardência e a irritação parecem um preço elevado demais. Outros possíveis efeitos adversos são alergias e blefarite, a inflamação na bordinha das pálpebras, a qual pode ser transitória.
Quando você não segue a prescrição
"A falta de persistência no tratamento é um desafio de saúde pública", entende o doutor Guedes. "Ela impacta tanto no controle da doença, que é progressiva, quanto em seu custo, que vai ficando mais caro na medida em que são necessários mais colírios para evitar a cegueira."
Mais recentemente, foram desenvolvidos tratamentos não farmacológicos que não deixam a história inteira nas mãos do paciente, na base do 'se ele usar direito o colírio, tudo dará certo". Entre esses tratamentos, há o laser, aplicado em consultório para corrigir os canais de escoamento do humor aquoso.
"Quando não resolve completamente, o laser faz com que aquele paciente que usava três colírios passe a precisar só de um, facilitando o cotidiano", diz o doutor. "Na Inglaterra, o sistema público de saúde adotou já adotou essa estratégia como primeiro tratamento. No caso, o colírio seria prescrito posteriormente, se ainda fosse necessário."
Há também microcirurgias que são bastante seguras e que colocam stents para manter bem abertos os tais canais, dando vazão ao líquido. "Elas são um outro para o paciente depender menos da disciplina com o colírio",explica o doutor.
No nosso país, uma vez diagnosticada a doença em usuários do SUS (Sistema Único de Saúde), eles são cadastrados em um centro de referência de glaucoma, com direito a passar por consultas a cada três meses, receber os colírios e, se for o caso, fazer cirurgia, quando existe indicação. É, de fato, um programa muito bem elaborado, mas que hoje atende apenas cerca de 200 mil indivíduos, ou seja, 10% das pessoas com glaucoma entre nós.
Um bom conselho
"Seja sincero com você mesmo", costuma repetir o doutor Guedes aos pacientes com glaucoma. "Se você é daquele tipo que, por qualquer mudança na rotina, deixará de pingar o colírio ou não o levará em viagens, melhor assumir esse perfil para o oftalmologista. Assim, ele cogitará direto a cirurgia ou o laser."
Vale frisar que pequenas subidas da pressão intraocular ao longo do dia — porém, um dia após o outro — já fazem um enorme estrago. O glaucoma não tira férias. Pega pesado com o nervo ótico na rotina agitada do trabalho e no descanso do final de semana. Veja bem isso.
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