Câncer cerebral: um corante usado na cirurgia dificulta a volta do tumor
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Quando alguém encontra um tumor no cérebro, na maioria dos casos ele apareceu pela primeira vez em outro órgão qualquer e, depois de ter se espalhado, foi parar na cabeça. É uma situação complicada? Sem dúvida. No entanto, o cenário é ainda mais difícil quando a doença se originou ali mesmo. Ou seja, quando não é um câncer que está no cérebro, mas que é do próprio cérebro.
Só 1% de todos os tumores malignos em adultos são desse tipo. E, entre eles, oito em cada dez são o que os médicos chamam de gliomas, surgidos em células como os astrócitos, que fazem de tudo para manter o conforto e o bom funcionamento dos famosos neurônios.
"Em uma comparação um tanto grosseira, imagine um queijo com mofo. O glioma lembra uma área mofada que você não sabe apontar com precisão onde começa, nem onde acaba", descreve o neurocirurgião e pesquisador paraibano Erasmo Barros da Silva Júnior, coordenador da Divisão de Neuro-Oncologia do Instituto de Neurologia de Curitiba, conhecido na capital paranaense como Hospital INC.
É lá que, desde 2015, esse neurocirurgião e seus colegas vêm usando um corante farmacológico que acusa onde estão as células doentes fugitivas. Aliás, o INC alega ser até hoje a única instituição brasileira que emprega o ácido 5-aminolevulínico no tratamento de cânceres cerebrais. Prazer, corante de nome impronunciável! Melhor fazer como os médicos e chamá-lo simplesmente de 5-ALA.
O 5-ALA existe desde 1948 e já é bastante conhecido de quem trata de tumores malignos de pele, inclusive no Brasil. Para glioma, passou a ser usado em 1995 na Alemanha. No nosso país, por sua vez, o INC soma a experiência de mais 860 pacientes que engoliram a substância antes de serem operados para a retirada do tumor no cérebro.
A novidade é que, em 2022, depois de muita pesquisa, a hospital curitibano aliou o corante ao uso de terapia fotodinâmica no meio da cirurgia. Os resultados, já publicados, surpreendem: a união consegue atrasar a volta do glioma avançado de seis a nove meses.
Se você pensar que a tendência seria uma recorrência após cerca de ano e meio em casos assim, entenderá que, com essa estratégia, os pacientes ganham um tempo de vida precioso livre da doença. E melhor: a dupla corante e terapia fotodinâmica intraoperatória poupa as células cerebrais sadias.
Remoção máxima
O aplicação do 5-ALA para dedurar o esconderijo de células malignas no cérebro já vinha fazendo enorme diferença. O doutor Erasmo da Silva Jr. explica: "Não adianta o neurocirurgião remover o 'mofo', continuando naquela comparação com o queijo. Se pedimos uma biópsia do local exato onde o tumor estava, ela pode apontar que não restou nada e, no entanto, existir uma célula doente a 4 centímetros de distância, que logo se transformará em novo foco da doença."
Essa, aliás, é a grande dificuldade desde que foram realizadas as primeiras cirurgias para remover gliomas, ainda nos anos 1890. A Medicina, claro, avançou tremendamente de lá para cá. Algo, porém, não mudou: a doença nos estágios 3 ou 4, que são os mais avançados, volta mais dia, menos dia. Isso porque sempre uma célula doente ou outra escapa, invisível até no exame de ressonância magnética que ultimamente é feito durante a operação.
É importante compreender: a cirurgia é crucial para quem tem um glioma. Não se faz quimioterapia antes para diminuir a região acometida, porque as drogas são bastante agressivas até para o próprio cérebro.
"O objetivo do tratamento cirúrgico é remover o máximo do tumor com segurança", define o doutor Erasmo da Silva Jr. Isto é, sem danificar as funções do sistema nervoso central. "É complicado quando temos de fazer uma remoção dessas em uma área ligada à fala", exemplifica ele.
O neurocirurgião conta que, depois de anos operando esse tipo de tumor, chega a abrir bem os ouvidos porque nota que o glioma faz um som diferente ao ser aspirado, já que tem mais água. Também sente diferença no tato. Só que mesmo profissionais experientes como ele são capazes de retirar células cerebrais sadias acreditando que são tumorais, exagerando e passando do limite. "Ou o contrário", assume. "É possível que a gente se engane pensando que já tirou o suficiente, quando deveria ir um pouco além."
Mudança de cor
O exame de ressonância intraoperatória diminui bastante os riscos de limpar área a mais ou a menos. Ainda assim, o 5-ALA entra nessa história como uma ferramenta e tanto."Na neurocirurgia, você usa microscópio o tempo inteiro, enxergando tudo aumentado e com uma luz forte", descreve o especialista. "Pois bem: quando usamos o 5-ALA, apertamos um botão que troca a luz branca pela azul." É, então, que a mágica acontece.
No organismo, o corante se converte em uma substância conhecida por protoporfirina IX, sensível às ondas luminosas. E, no caso, quando exposta à luz azul, a tal protoporfirina IX faz os focos do glioma parecerem um vermelho alaranjado forte. "Lembram lava de vulcão", garante o doutor.
Até pode acontecer de ele enxergar um pontinho ou outro que apenas se tornou rosado. Não importa: o médico vai atrás deles. "Não é porque está menos vermelho que é menos agressivo", justifica. "Na verdade, o tom forte ou suave é determinado pela concentração de células malignas." Idealmente, a cirurgia só termina quando, botando a luz azul, vê-se... tudo azul!
No tempo certo
O médico calcula a dose do 5-ALA conforme o peso de cada paciente. A substância é engolida quatro horas antes da operação, quando começa o seu pico de fluorescência, que vai durar mais outras quatro horas.
"Portanto, se a pessoa tomou o corante lá pelas 6 da manhã, às 10 horas ela já deve estar com o crânio aberto para a gente começar a trabalhar no seu cérebro", conta.
Luz nas bordas
Acontece que o 5-ALA tem outras propriedades bem interessantes. Ele seria até capaz de deixar as células malignas mais vulneráveis à radiação e, desse modo, favoreceria a radioterapia depois, isto é, se não tivesse uma vida um tantinho curta no organismo. Mas as células doentes também ficam mais frágeis aos raios luminosos, certo? Daí, a mais recente sacada da neuro-oncologia.
Nela, primeiro os cirurgiões tiram toda a área tumoral, que aparece exuberantemente vermelha, ora aspirando, ora cortando-a com delicadeza. O resultado é uma cavidade, em algumas ocasiões de tamanho impressionante. "Mas a gente sabe que, em 90% das vezes, o glioma volta por causa de uma célula doente, a qual não enxergamos nem sequer com o corante, que ficou na beira dessa cavidade", explica o neurocirurgião. É bem ali, na borda da região operada, que a doença costuma recidivar.
Por isso, o que estão fazendo no centro cirúrgico do INC — como, aliás, outros grupos na França e na Alemanha — é colocar um difusor de luz infravermelha dentro do buraco deixado no cérebro após a remoção do glioma. Ele permanece nessa cavidade por aproximadamente uma hora.
"Essa luz reage com as células que têm muita protoporfirina IX — justamente aquelas doentes —, após a conversão do 5-ALA. E essa reação causa a sua necrose", afirma Erasmo da Silva Jr. Como a luz penetra, a terapia pode matar células cancerosas que estão a 1 ou 2 centímetros de profundidade.
Já existem 12 brasileiros com glioma avançado submetidos a essa técnica. No caso deles, a doença já tinha sido tratada e retornado. Mas, com o corante e a terapia fotodinâmica atuando em dobradinha na etapa final da cirurgia, dessa vez ela demorou pelo menos seis meses a mais para dar as caras de novo.
E o futuro?
Os especialistas de Curitiba, agora, testam algo completamente diferente: um difusor externo de luz infravermelha, que mais lembra um capacete.
"O paciente toma o 5-ALA por alguns dias seguidos e, nesse período, usa o tal difusor várias vezes", relata o Erasmo da Silva Jr. O objetivo do primeiro trabalho sobre essa estratégia terapêutica, publicado no final de 2024 na revista científica Brain Science, foi avaliar somente a questão de segurança — se isso faria mal à pele, por exemplo, o que felizmente não aconteceu.
O cirurgião lembra que a situação é muito diferente de lançar luz direto no local onde havia um tumor. Vindos de fora, os raios infravermelho devem atravessar barreiras além da pele, como meninges e crânio. Logo, a quantidade de energia que alcança o glioma acaba sendo menor.
Mas será que já seria o suficiente para reduzir o seu tamanho e, assim, diminuir buraco deixado no cérebro operado e os riscos de sequelas depois? É a boa pergunta que os pesquisadores de Curitiba se fazem agora.
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